14 de março: Poesia, Pois é, Poesia





POESIA: PAIXÃO (TESÃ0) DA LÍNGUA
                                                               
Pra início de conversa (ou desconversa) fiada, que se fia, se desfia, se ata e se desata, eu desejo que esta seja uma viagem de língua na linguagem, linguaviagem,  ou um banquete de palavras, suculentos pratos de palavras para a nossa “saboração”. Saboração é uma palavra inventada, palavra-valise, pois traz dentro de si (pelo menos, tem essa pretensão) o saber, o sabor e sedução: saboração.

Lewis Carrol, matemático e poeta inglês, autor de “Alice no País das Maravilhas”, foi um grande inventor de palavras-valise: gritos+silvos= grilvos; grama+silvos= gramilvos (na tradução de Augusto de Campos do seu “Jabbrwocky”, Jaguardarte). James Joyce, leitor de Carrol, também: fumante+furioso= fumiroso. Entre nós, Souzândrade, poeta maranhense redescoberto pelos irmãos Campos, com suas palavras-montagem: “jubilogritantes”, “algaverdecomados”, “escamiventreprateados”. Leminsk, em sua poesia-prosa-caoscósmica chamada Catatau nos fornece outro exemplo: “calverdáver”, “contagotagiosas”. Há umas palavras-valise deliciosíssimas do Caetano Veloso, tais como “parafins, gatins, alphaluz, sexonhei da guerrapaz, palávora, lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me, felicidadania”. E por aí vai.

Na verdade, eu desejo que esta conversa seja uma grande brincadeira - brincadeira com a matéria-prima da poesia: as palavras; pois fazer poesia é, de certo modo, molecar com as palavras; portanto, brincar, “descobrir a infância em nós”.  
O meu objetivo aqui é estabelecer um diálogo poético, que é ao mesmo tempo, no dizer do poeta mexicano Octávio Paz, um acordo e um acorde, pois pressupõe a cumplicidade de vocês, mas é também melos, no sentido que os gregos davam a esta palavra, que significava duplamente canto e encantamento. Música, portanto, para ouvidos atentos. Comecemos, então.

Música, melodia, canto, encantamento. O que é a poesia? Eu diria que é o exercício de uma paixão especial: a paixão pela linguagem. O que é uma paixão? Ás vezes é bom começar pela etimologia. Os gregos tinham duas palavras “paixão”: uma que significava “sofrimento”, “fixação”, “obsessão”, era a palavra páthos. (Não é comum dizer-se de uma pessoa apaixonada, que está sofrendo, sofrendo de amor? A paixão – pathos- tem dessas coisas: nos deixa meio paralisados, meio patéticos). Aí entra a outra palavra paixão: é timos. Timós, para os gregos, significava “coragem”, “força”, “ânimo”, (pois timós também pode significar “fumaça”, “sopro”, “vento”, mesma raiz, portanto, da palavra anima, animus). Neste sentido, a paixão também é impulso para fazer algo, é ação, movimento. Pensar o movimento das coisas foi a paixão dos gregos, daí inventarem também a filosofia. Voltando a pergunta: O que é paixão? Eu diria que é o interesse exacerbado, obsessivo, corajoso e desmedido por algo: homem, mulher, planta, bicho, poema.A poesia é exatamente esse interesse exacerbado, obsedante, corajoso e desmedido pela linguagem. É páthos e timós ao mesmo tempo.

Mas o que é a linguagem? Diz o filósofo alemão, Heidegger, que a linguagem é a “morada do ser”; é o lugar, o local, o manancial onde o “ser” se desvela, se revela, vem à tona, isto é, passa a existir. O homem, o mundo e todas as coisas só existem através da linguagem. Como entender o homem, o mundo e as coisas, sem chamá-los de “homem”, “mundo” e “coisas”? Ou como diz Octávio Paz: “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade. Não há pensamento sem linguagem, nem tampouco objeto do conhecimento: a primeira coisa que o homem faz diante de uma realidade desconhecida é nomeá-la, batizá-la”.  E também erotizá-la. 

Se a poesia é a paixão da linguagem, e a linguagem é a “morada do ser”, como disse Heidegger, é evidente que o poeta (poiétes) é o sujeito dessa paixão e é aquele que habita plenamente essa “morada. Na verdade, todos nós habitamos a linguagem, posto que a utilizamos cotidianamente para fins de comunicação. A maioria das vezes é um uso pragmático. Agora, habitar plenamente é outra história. Habitar plenamente é perfurar este manancial, que é a linguagem, fazendo jorrar a “palavra dizente” , o pulso das palavras, como disse Maiakóvsky neste belo poema,transcriado pelo poeta Augusto de Campos:

Sei o pulso das palavras, a sirene das palavras
Não as que se aplaudem do alto dos teatros
Mas as que arrancam caixões da treva
e os põem a caminhar quadrúpedes de cedro 
Às vezes as relegam inauditas, inéditas
Mas a palavra galopa com a cilha tensa
ressoa os séculos e os trens rastejam
para lamber as mãos calosas da poesia
Sei o pulso das palavras, parecem fumaça
Pétalas caídas sob o calcanhar da dança
Mas o homem com lábios, alma, carcaça

Fazer jorrar a “palavra dizente” significa dizer o essencial. Dizer o essencial é justamente dizer o não-dito, o que escapa à rotina dos clichês, ou dizer o já dito de outra forma,inventando para as palavras já gastas, corroídas e enferrujadas novos relacionamentos, nova sintaxe. 

Só o poeta é capaz disso, dessa “residência poética”. “Rico em méritos, é, no entanto, poeticamente que o homem habita esta terra”, afirmava o poeta alemão Hölderlin. Habitar a terra, ressignificando-a. Há aqui uma responsabilidade ético-estética com a linguagem. O bom poeta torna a língua mais rica; o mal poeta a empobrece. Pois “a poesia é como a lavra do radium, um ano para cada grama – para extrair uma palavra, milhões de toneladas de matéria-prima”, já exigia Maiakóvsky. Poesia é linguagem elevada à enésima potência de significação. Neste aspecto, vale citar o poeta Manoel de Barros, que expressa num único verso esta função precípua do poeta e da poesia: MINHOCAS AREJAM A TERRA; POETAS, A LINGUAGEM.


Evoé, Poesia!

Herbert Emanuel






Imagens da comemoração do Dia da Poesia
Realização: Grupo Tatamirô de Poesia, Pium Filmes, Fora do Eixo Letras (AP)
Local: Anfiteatro da Fortaleza de São José de Macapá













Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"AMAR É UM DESERTO E SEUS TEMORES"

José Paulo Paes e a literatura que encanta adulto e criança

Dulcinéa Paraense: a flor revelada