A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO AMOR

por herbert emanuel

"Constatar o Insuportável: esse grito  serve para alguma coisa: ao me significar que é preciso sair disso, de qualquer maneira, instalo em mim o teatro marcial da Decisão, da Ação, da Saída."
                                       Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso

I - ÍNVIOS SIGNOS DO AMOR:

 À MANEIRA DE ROLAND BARTHES


No livro de Milan Kundera, “A Insustentável Leveza do Ser”, a personagem Teresa não suportando mais a situação de infidelidade de Tomás, decide partir deixando-lhe um bilhete no qual revela não ser suficientemente forte para aceitar (suportar, sustentar) a leveza do seu (dele) amor.


Amar pesadamente (como Teresa) nos torna fracos, suscetíveis a tudo, frágeis; ficamos à mercê do outro, do que ele faz, do que ele diz, do que ele não faz, não diz. Sempre ele, sempre! Somos raptados (Barthes), capturados, aprisionados pelo outro, pela sua imagem (a imagem do amor), ainda que sejamos nós (eu), o sujeito que ama, o raptor, o que partiu para a conquista, para a captura. Curiosa inversão: “é o objeto raptado que é o verdadeiro sujeito do rapto; o objeto da captura se torna o sujeito do amor; e o sujeito da conquista passa ao posto de objeto amado.” (Barthes).
Ao amarmos de forma pesada, transformamos o outro num signo pesado, isto é, pleno (cheio, denso, transbordante) de significados. Qualquer atitude, fala ou gesto seu está prenhe de sentidos, e cabe àquele que ama interpretar ou decifrar. Transformamo-nos, então, em hermeneutas, filólogos, obstinados intérpretes! E o pior: todos os signos que o outro emite são, por natureza, signos de incerteza, de ambiguidade e, até mesmo, falsos. Por isso, aquele que ama pesadamente é um atormentado, não conhece a paz a não ser momentaneamente, quando acredita (quer dizer: se ilude) ter decifrado alguma coisa ou quando renuncia a toda interpretação (Barthes), aceitando tudo do outro como sendo verdadeiro.
“É curioso o que acontece comigo, te amar assim dessa maneira, desesperado - eu que sempre amei levemente!”. Assim poderia falar um apaixonado (com alguma leitura, pelo visto), reconhecendo em si (no seu amor, quero dizer) a inevitável mutação amorosa, a passagem do leve para o pesado.
Mas o amor comporta essa relação heraclítica entre peso e leveza.


Somos pesados quando queremos possuir, reter o outro a qualquer custo, quando somos “donatários de capitanias”, quando não partilhamos, não dividimos.
Somos leves quando, ao contrário, compartilhamos, dividimos, deixamos o outro voar, partir, fugir, seguir para onde quiser (“devir-Sabina”, “devir-espaçonave”);  quando somos “perfeitos” (só a perfeição aceita partilha, segundo Barthes), quando transgredimos a lei do amor, quando não somos ciumentos.
“Pássaro em fuga, como as amadas de Proust, eu sou; nada esperem de mim que dure eternamente: o que amo, já não amo mais”. Canção de um amor leve, levíssimo!
É impossível, creio, não ocorrer no amor essa dialética, essa tensão permanente entre o pesado e o leve. Seria impossível mesmo? Vejamos, então, esse mesmo tema a partir de uma outra perspectiva.
         
II - “MÁQUINAS SIMBIÓTICAS” X “MÁQUINAS CELIBATÁRIAS”:
CARTOGRAFIAS AMOROSAS
A PARTIR DE
 FÉLIX GUATTARI E SUELY ROLNIK.

A partir desta perspectiva, podemos pensar essa tensão dialética, essa relação entre peso e leveza, como duas formas constitutivas de cartografia amorosa, duas maneiras de amar, dois modos de constituir “territórios amorosos”.
A primeira relação, pesada e possessiva, funciona como uma espécie de “máquina simbiótica”. É aquela relação que diz assim: “sem você, meu amor, eu não sou ninguém”, “você é minha vida”. A nossa literatura musical, do brega à música popular brasileira mais elaborada esteticamente, expressa em demasia este tipo de relação. Vinícius de Moraes, por exemplo.Ela constitui territórios amorosos cujas fronteiras são muito bem vigiadas pelo ciúme, guardião do amor, cujas fronteiras não podem ser ultrapassadas sem uma espécie de salvo-conduto do outro, salvo-conduto temporário, que o obriga a voltar novamente, pois “cada volta tua há de apagar o que esta tua ausência me causou”. Este amor nunca pode transitar livremente; há uma espécie de geopolítica amorosa que o limita: o arraigado familiarismo, a tentativa desesperada de constituir família, ou melhor, um tipo de território familiar: o da solidão a dois, a do “inferno entre quatro paredes”, pra usar uma expressão de Sartre. Este tipo de amor não é alado, pois não possui asas, tampouco é capaz de doá-las. Este tipo de amor leva inexoravelmente à morte, pois, aqui, quem ama mata. Pausa para uma reflexão, talvez um tanto quanto absurda: o final do livro de Milan Kundera culmina com a morte dos dois personagens (Teresa e Tomás) num acidente. Teria sido esta morte simplesmente acidental? O que significaria esta morte? Que tipo de território amoroso eles - Teresa e Tomás - acabaram por constituir? Estas perguntas ficam no ar, para vocês refletirem. Falarei agora da segunda relação.


A segunda relação, leve e transitiva, funciona como uma espécie de “máquina celibatária”. (Estes dois termos que eu utilizo: “máquinas simbióticas” e “máquinas celibatárias”, são de Félix Guattari e do Gilles Deleuze. Foram criados por eles para designar modos de constituição  de territórios do desejo). É aquela relação que diz  assim: “nada dura eternamente: o que amo já não amo mais”, “alguém  quando parte é porque outro  alguém vai  chegar” (Cazuza). Este amor, ao contrário do outro, é extremamente livre, transita permanentemente, desterritorializa, é incapaz de constituir territórios amorosos; não quer, não deseja, não pode fazer isto. É o amor da aventura amorosa, sempre passageira. Amor-espaçonave: ora aqui, ora ali, ora alhures. Voa por todos os lugares, mas não se fixa em nenhum. Todos os lugares: nenhum lugar. Livre para voar, voar, mas incapaz de pousar com mais demora, pois, quando pousa, sua tendência é constituir, de novo, um território amoroso e simbiótico. Esta é a sua contradição: se continuar voando, voando, voando, acabará morrendo por exaustão, de cansaço. Se pousar e fixar território nos moldes simbióticos, morrerá do mesmo jeito, sufocado.
E agora? Se as nossas relações amorosas comportam estas duas cartografias, o amor, ao que parece, tende sempre para um irremediável fracasso, para a morte. O amor seria, então, impossível? Suely Rolnik, num livro escrito por ela, Félix Guattari e outras mãos, intitulado “Cartografia do Desejo” (Ed. Vozes, 1986), nos esboça uma possível outra cartografia. Termino meu texto com uma longa e necessária citação deste livro.  
 “Entramos no cinema e descobrimos, numa cidade do futuro - não distante - que, para além desses dois vetores (“máquinas simbióticas” x “máquinas celibatárias”), delineia-se toda uma experimentação de montagem de outros territórios de desejo. É Ridley Scott que nos introduz a este mundo, em seu filme Blade Runner (“O Caçador de Andróide”, no Brasil). Nele somos apresentados aos “replicantes”, robôs programados para colonizar o espaço. Perfeitas réplicas do homem, eles só não estão equipados para produzir réplicas emocionais (isto só atrapalharia sua livre circulação pelos planetas, indispensável ao cumprimento de sua tarefa). São replicas sim - mas das máquinas celibatárias, em seu máximo aperfeiçoamento.


Mas isto não é assim tão tranqüilo para eles: quando está para expirar seu prazo de existência, rebelam-se. Replicam. No começo do filme, eles acabam de voltar à Terra justamente para subverter esse seu destino. Querem desertar sua condição de desalmados: já pressentem estas faixas de frequência para as quais o homem, seu criador, negou-se deliberadamente a equipá-los. Atacam a empresa de seu criador: querem viver. Mas a vida já não pode ser para eles. Seu destino é fatal! Sua revolta só vingará se contaminar os humanos.
Deckard, um quase não-homem - ser homem, dizem no filme, é ser perseguido (man) ou perseguidor (policeman) e Deckard não é nem um nem outro -será o escolhido, pelos homens, para eliminar os replicantes. Pelos replicantes, para ser contaminado com o recém-descoberto potencial de envolvimento, de generosidade, com a coragem que esse potencial requer para se expandir.
Roy, chefe do bando dos replicantes, em meio a uma luta de vida ou morte com Deckard, o salva, o contamina e morre.


Deckard, primeiro homem quase replicante e Rachael, última replicante quase humana, salvam-se. Apaixonados e amorosos, partem juntos e o filme termina.
Ficamos com a esperança - talvez ingênua - de que eles inventaram outra espécie de amor. Ficamos sonhando com a possibilidade, de . . . uma outra cena? Um outro mito?. . .
Um além dos Ulisses e das Penélopes (“máquinas simbióticas”): um amor tão demasiadamente humano. Montagens desintoxicadas do vício de redução do desejo do mundo a um objeto-pessoa ou a uma pessoa-objeto.
Mas também um além das “máquinas celibatárias”, esse avesso do homem: um amor não tão demasiadamente desumano. Montagens desintoxicadas do vício de proliferação de mundos objetos do desejo - proliferação tão desenfreada que não há mais nem mundo, nem desejo.
Ficamos imaginando um além do homem (humano e/ou desumano), onde campos de intimidade se instaurem. Territórios-pousadas. “Uma certa inocência...” (Op. Cit. p. 290)

Uma nova suavidade... conclui Suely Rolnik. Será possível? 

Comentários

  1. Que belo texto, estimado amigo!
    Apreciei muito a leitura do texto Hebert, gratidão por propiciar tamanha leveza com sua reflexão nessa narrativa.
    Forte abraço,

    Samara Barbosa.

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