Cheiro de couro


ou
De como Isnard Lima se apresentou

Por Heluana Quintas

Entre edições antigas de romances de importância irregular na literatura mundial, Rosas para madrugada era o único livro de poemas na estante do meu pai. Livros que iam de Graciliano Ramos e Camus a romances eróticos americanos, e, também, álbuns de fotografia; as quinquilharias dele têm um cheiro peculiar de couro, combustível dos potentes motores das minhas lembranças. Rapidinho, rememoro um tempo que não vivi. Couro era matéria de muitos acessórios nas décadas de 60 e 70. Este é o cenário da nostalgia em que preguei as prateleiras do meu pai e tudo o que nelas se justapõem.
O Rosas para madrugada não me disse diferente: “Para Cosme Jucá: as revoltadas Rosas que este século sem ternura me ofertou”, em  07 de dezembro de 1968. Cheiro de couro, década de 60, Guerra Fria... Meu pai era operário da ICOMI. A ICOMI extraía manganês, cujo controle da exploração era altamente estratégico na Guerra Fria – e agora fico pensando que talvez nesta frase estejam endereçadas as possíveis justificativas das desesperanças de muitos poetas do Amapá daquela época: o controle, a exploração, a guerra. Volto ao livro e imagino que Isnard se assemelhe ao meu pai. Pelo perfil boêmio. Não errei (vi numa foto postada na internet pelo poeta Paulo de Tarso). No que mais posso estar certa? Aprendi que na Literatura é impossível afirmar. Jamais me certificarei, portanto, dos endereçamentos que citei, e, nos parágrafos abaixo, tudo permanecerá como os livros na estante do meu pai que foram/esperam ser abertos às possibilidades do cheiro de couro ou outro aspecto marcante selecionado por um outro leitor.
“Você tem o nariz inteligente!” - foi assim que Isnard caricaturou numa frase a poetisa Luli Rojanski - ela mesma me contou. Adriana Abreu uma vez me disse que ele era muito querido e que gostava de encontrá-lo: “Estava sempre por ali, no Centro da cidade”. Bebia, fumava muito, era também ele próprio a caricatura do poeta e isso entusiamava o jovem Herbert Emanuel. Isnard Lima era, ao que tudo indica, muito autoafirmativo quando se tratava do ofício da poesia. Não obstante o imaginário de jovens poetas como Rojanski e Emanuel, Isnard era muito objetivo quando o assunto era viver o poeta. Ele escolheu esta figura para si e esta mensagem é recorrente em vários poemas do Rosas, como é o caso de Marca (p. 07):
Nesta estrada reta
sobrou a máscara
obscena
            de Poeta
 Ou ainda o Salve Bandeira! (p. 23) em que, comparando sua trajetória à de Manuel Bandeira, confere a si genialidade, a boemia, e ao outro a manhã e um caminho mais estreito, conforme podemos conferir na última das três estrofes que compõem o poema:
Será o mesmo menino ex-t-ísico
berrando o teu amor
Pelas ruazinhas do Mundo.
Eu, não.
Serei o vagabundo genial
amigo das crianças
amante das rosas
E Poeta.
Isso mesmo.
Poeta sem carnaval
Rosas tem uma escrita inconstante em variados aspectos. Em geral, os poemas apresentam imagens muito interessantes, mas que nem sempre sustentam integralmente o texto, e, normalmente, ou o encerram ou são abandonadas no decorrer dele em favor de um sentimento bruto: o de dizer claramente e logo. Isnard acaba sendo emergencial, ansioso. Esta característica, embora por vezes desburocratize a mensagem, esvazia-a do enigma, do segredo, da coautoria do leitor. Vejamos o exemplo de Alvorada (p. 09) no qual a primeira estrofe apresenta um cenário, uma imagem da estática madrugada macapaense, e a segunda e última estrofe encerram a imagem do poema, amputando o prosseguimento da leitura, tornando-a precocemente conclusiva:
Os postes da Rua Leopoldo Machado
estão mortos
sepultados de pé
em coluna um por um

Mas eu vejo estrelas nos buracos
do chão!
São escarros de Deus
jogados em profusão
(policrômica)
nesta manhã de sábado
mundano
imersa
em mênstruo.

O poeta assume, deliberadamente ou não, tons da linguagem ordinária, da prosa, o que, segundo Novaes (Os poetas que pensaram o mundo, p. 13), rompe com a intransitividade de que deve ser dotada a linguagem da poesia, legando-lhe imediatismo:
A linguagem da poesia é absolutamente intransitiva. A linguagem ordinária, isto é, a prosa, serve sempre de passagem da palavra para outra exterior a linguagem, transição imediata e insensível a algo não-verbal – eu falo, você faz – e tem como objetivo fazer-se compreender de imediato – a utilidade prática. A linguagem ordinária é “anulada no próprio momento em que é compreendida”. Mas a linguagem poética intransitiva e “incomunicável” “deve ter caráter mágico” cuja função é produzir excitações sobre os “nervos do espírito” “um estado de encamento” (...). Assim, a poesia jamais pode ser tomada como “sistema de expressão”, intermediário, útil e cômodo para o espírito que quer compreender e se fazer compreender, “mas como uma potência de transformação e de criação, feita para criar enigmas mais que para esclarecer.”
Inteiro para imagens, o poema Ressaca (p. 42), cujo tema central é o ambiente da boemia de Macapá, terá muitos elementos cênicos retomados em outros poemas – Poema para um bobo (p. 28), Novembro de 68 (p. 39),  Sortilégio (p. 55),  Avenida FAB (p. 57). Esse poema apresenta musicalidade de um piano Charleston, aqueles de saloon de faroeste, e um clima quente-úmido:

A música das moscas
sôbre a mesa
zumbe abstrações aéreas
provoca o espectro
de ilusões etéreas
e foge para o ar!

Nos rostos
o suor transpira,
nas almas o Amor
suspira
 e adquire
formas excêntricas
dentro
Du Bar...  
                                     


Heluana Quintas e Otto Ramos: A música das moscas


 Faz frente a este ambiente boêmio, em que vive o eu-lírico, uma religiosidade  cristã. É o que percebemos em Eclipse (p. 32), Êxtase (p. 26), Rumo (p. 38), Para S. Cristovão (p. 51), Espelho (p. 54) e mais fortemente em Místico (p. 36), que assume tom confessional.

Estou feliz, Senhor, no dia de hoje.
Alimentado, forrado, amanhecido...
Parece que estou feliz.

No meio do areal deixei a caravana,
e vim, trazendo no rosto a bruteza do Simum,
nos olhos a secura dos viajadores cansados,
nas mãos o orvalho quente do Deserto.

Não sou um peregrino a caminho de Meca:
o túmulo de Moisés foi profanado;
levaram a Urna, as vestes
e o Gral de ouro batido nunca existiu
(era esmeralda),
mas terás dentro de mim, um servo, meu Senhor.
Há trigo, cevada e mirra.
Usarás como Dono aquilo é Teu.

E se a porta não abrir no em que chegares,
sabes: minha resposta é pobre e sem valor o ato.
Saberás: estarei dormindo embrionário ainda,
o sono das terríveis noites seculares,
à espera de Tua Voz,
à espera de Tua Luz,
do Teu Amor,
dos Cravos
                    e da
                            Cruz...

Como vemos, o eu-lírico nutre contrição, redenção e se justifica por uma prematuridade diante de Deus. A religiosidade que o acompanha se apresenta como que resguardando de piedade por parte do poeta todo o ambiente boêmio que ele frequentava. Pelo poder que sua escritura lhe confere, através dos versos, ele dispara, pedindo pelas putas, pelos bêbados, pelos homossexuais, pelos loucos e por si.
                              
Tem piedade de minhas irmãs prostitutas!
Elas bebem comigo e são amargas
Faze com que sejam estéreis

Tem piedade, Senhor, do meu amigo bêbado
Piedade para o terceiro sexo frustrado
e para ladrões também
Permite  não os cegue a Noite
nem o Dia
nem a Morte
nem o Açoite
nem a Sorte
nem a Dor
nem o Álcool
nem AMOR” (Súplica, p. 06)

Mas essa dualidade (boemia/religiosidade) não é a única: em Rosas para a Madrugada há ainda a Esperança com a luta X Desesperança com a guerra.
Quando fala de futuro, ora aloca credibilidade na mudança que virá a partir da juventude, ora a desacredita. Ao mesmo tempo em que conclama como um vanguardista mostra-se fatigado. Estas foram, em princípio, as características que mais me chamaram atenção quando compunha o cenário em que o poeta viveu, visto que há recorrência do tema em outros de seus contemporâneos. Na Canção Final (p. 25), ele protesta:
“Cantarei hoje a última canção
de protesto
para o Mundo
Haverá lágrimas
e sangue
amor
e mágoa
revolta
e dor.”

E, no que segue, ele protesta, supondo a força de sua palavra; entretanto, desacredita o próprio eco:

Meu poema é teu, irmão
Está a tua disposição em qualquer lugar
Meu berro de guerra não se perderá no ar!

Encontrará resposta em outras esquinas
Subirá as praças, derrubando mitos

Meu poema é prece de guerra
ensanguentando a terra
em que vivemos mortos.

Além das dualidades religiosidade/boemia; esperança/desesperança são comuns o Amor e a Despedida. Em todos os casos, emerge um lirismo exagerado, roto. O Amor em Isnard é de um romantismo decadentista, ao estilo mal-do-século. Embora negue em Sortilégio (p. 55) - “Não sou decadente. Dir-te-ei coisas mais lindas do que ele” – esta perspectiva de um amor dolorido, rasgado, de lirismo excessivo é permanente, como  podemos ver em:
“Impossível falar de amor
sem acontecer vulgar” (Limitação, p. 02)

“Amo-te e proclamo
o amor imenso
estranho
(e denso)
que me inspiras” (Certeza, 19)

“Amo-te porque me serves
Sou teu escravo
Onde a rosa de granito existe” (Declaração N°01, p.22)

“Hoje, não amo ninguém...
Eu sei a desvalorização
e os calos do coração” (Sina, p.60)

“A noite inteira velei teu sono
lendo a paisagem eterna das estrelas” (Último poema, p. 41)
Muitos poemas são uma despedida. Aos 26 anos, Isnard não parecia apenas descompassado, reforçava uma desesperança no que vivia, e exaltava, em homenagem, o lugar de destino dos que iam falecidos: Antonio Bandeira (p.31), Canto Para Martin Luther King (p.52), Canto Para Os Irmãos Negros De Miami (p.53), Para Abel Bezerra (p.58), Para o livreiro (p.03), Poema para o amiguinho (p. 10) e, o que sintetiza todos os já citados, Círios (p.33):
“(...)
Vim acender meus círios
para os amigos transportados:
O pai,
meu amiguinho,
o amigo livreiro
Sei que eles ouvem
e estão perto de mim
Deus quis assim.

Não vos apagueis tão cedo
círios brancos lindos!
(...)”
Homenagem fez também a outros poetas como em Madrugal (p. 47), no qual mostra um Alcy Araújo companheiro de boemia, ou mesmo À Filha de D. Líbia Castro (p. 46) para quem deseja toda a bem-aventurança nos seus 15 anos. 
Depois de tê-lo lido inteiro, de ter musicado dois poemas junto a Otto Ramos, um roteiro se desenhava: era uma cidade pequenina na maior floresta tropical do mundo. Um homem com uma bengala sentava-se num banco de praça. E o silêncio depois do fechamento dos bares trazia melancolia, solidão e lembrava uma trégua numa infinita faixa de combate - “Está uma guerra silenciosa” - estamos numa ilha. O que os poetas fazem no Brasil, interessa menos que um sentimento antigo, do século anterior. É como se o mundo terminasse aqui e o cheiro de couro existisse para recomeçá-lo.
Fecho o livro, ponho-o na estante e olhando bem para ela percebo que angústia não está só no título de Graciliano Ramos.  
                     
Fotos: Mario Dias (Mariozinho)

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