Por um postropicalismotranscibernético
Por Herbert Emanuel
Para
o Movimento Circuito Fora do Eixo e, em especial, aos amigos Otto Ramos e Heluana Quintas
Não
existe atitude mais anti-tropicalista do que endeusar o tropicalismo,
transformando-o numa espécie de cover do próprio tropicalismo (tipo cover do Raul,
do Legião Urbana, do Cazuza, etc.). Por quê? Porque aí não há criação, somente
imitação repetitória. A atitude
tropicalista é, ao mesmo tempo, antropofágica e tecnológica, pois soube devorar
dois grandes movimentos da cultura brasileira: a antropofagia oswaldiana e o Concretismo.
Se o primeiro propunha, a partir de uma re-leitura ética, estética e
antropológica das nossas “origens” culturais, desconstruir toda uma metafísica
da identidade cultural centrada no ideário branco-europeu-cristão, incorporando
(e essa palavra é muito apropriada), canibalisticamente, nossa porção indígena
como forma de resistência a essa cultura branca dominante; o segundo propõe uma
desconstrução da linguagem poética tradicional, incorporando, oswaldianamente, as
próprias conquistas tecnológicas da civilização ocidental, flertando
criativamente com a ciência, com a música popular e de vanguarda- Werbern, Stockhausen,Pierre
Boulez, John Cage - com as artes plásticas – Helio Oiticica, Mira Shendel, Lygia
Clark - estabelecendo um diálogo instigante com estas linguagens.
O
próprio Caetano Veloso musicou alguns poemas dos irmãos Haroldo e Augusto de
Campos: Pulsar, deste último, e um
trecho do poema Galáxia, do primeiro,
só pra citar estes dois. Tenho um vídeo em que aparecem Caetano Veloso, Arrigo
Barnabé e Péricles Cavalcante, na casa do Augusto de Campos, falando de música
e poesia, o Péricles Cavalcante tinha acabado de musicar o trecho de um poema
do poeta inglês John Donne (1572-1631), com tradução do Augusto, que virou um
poema-canção lindo: “Deixe que minha mão
errante adentre,/Atrás, na frente, em cima, embaixo, entre./Minha América! Minha
terra à vista (...)” O Tropicalismo devorou tudo isso, fez uma geléia
geral, explodiu de vez as fronteiras entre o popular e o erudito, a cultura de
massa e a cultura popular, o mau gosto e o bom gosto, propondo uma cultura
mutante, misturada, mestiça, berimbau com guitarra elétrica, parabolicamara y otras cositas mais,
portanto, fora de qualquer esquema conceitual binarizante, de qualquer lógica
disjuntiva, tipo certo ou errado, branco ou preto, afirmando outra lógica,
conjuntiva: isto e aquilo e aquele outro. Nada mais anti-tropicalista,
portanto, do que pensar certos temas como de autoria, direitos autorais,
utilizando-se de velhos conceitos-chavões binarizantes.
Na
sociedade contemporânea, chamada de pós-moderna, pós-utópica, pós-vanguarda,
por alguns autores, as tecnologias digitais operaram uma verdadeira revolução
na nossa maneira de ver-pensar-sentir
as coisas, que esses velhos conceitos criados no auge da modernidade industrial
não dão mais conta. Filósofos como Foucault, Deleuze, Michel Serre, Pierre
Levy, entre outros, produziram toda uma reflexão interessante sobre isso.
Foucault, por exemplo, vai falar de uma morte do sujeito, entendendo-o como um
discurso construído pela modernidade nascente, de herança cartesiana. Deleuze vai
propor uma filosofia das multiplicidades e da diferença como oposição à filosofia
tradicional centrada na idéia de unidade e identidade de matriz platônica e
também cartesiana. Já Michel Serre, muitas das suas contribuições para a
reflexão sobre a contemporaneidade, foi pensar o conceito de rede para além de
sua dimensão puramente topológica; para este filósofo, ela é fundamentalmente
ontológica. Uma rede é – segundo ele - formada num dado instante por uma
pluralidade de pontos ligados entre si por uma pluralidade de conexões. E
nenhum ponto é privilegiado em relação a outro, o que faz com que ela tenha múltiplas
entradas. Como Foucault e Deleuze, Michel Serre também desconstrói toda uma
filosofia centrada na imagem de um sujeito legislador, fruto também do
cartesianismo. Em oposição a essa
imagem, o filósofo propõe sua filosofia mestiça, arlequinada. “(...) Frente a
uma filosofia crítica, marcada pelo ideal de purificação, Serres afirma uma
filosofia mestiça, marcada por uma prática híbrida. A uma ontologia dualista,
dividida entre o sol e a terra, Serres propõe uma ontologia monista da
mestiçagem. O lugar mestiço não é, para Serres, um meio-termo entre dois
pontos, entre o certo e o errado, o sujeito e o objeto. Ele é, antes, o mundo
em torno de nós, é um meio que ocupa a totalidade do volume no qual vivemos. A
filosofia de Serres afirma a inclusão do mestiço em nosso mundo, mestiço que
fundamenta as nossas práticas, as nossas ciências, o nosso ambiente.”¹ E,
acrescento, que nos possibilita pensar a nós mesmos por dentro dos inteiramente
outros.
Aqui,
vale mencionar também o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros, com a noção de
perspectivismo indígena que
problematiza de certo modo os conceitos de animalidade, humano e cultura, criados
pelas sociedades ocidentais. Para mim, Viveiros é um dos grandes pensadores da
atualidade, que defende inclusive uma produção colaborativa, através da
ferramenta wiki, via internet, não-autoral-identitária. “A ideia – diz – é
produzir uma intertextualidade, sintagmática, ou horizontal, no lugar da
intertextualidade usual, paradigmática e vertical, do texto autorado e publicado, em que o nome do autor vem no
começo, a bibliografia no fim, e as aspas encerram os outros, não o eu. O que
estamos buscando – continua - é uma espécie de hipertexto, e não apenas no
sentido usual do termo, onde essa organização seja posta para derivar e variar:
enlouquecer as aspas (adorei isso!), em certo sentido. Um princípio construtivo
desse hipertexto é o princípio hermenêutico clássico segundo o qual todos os escritores que tratam do mesmo
objeto são o mesmo escritor.”² E
acho que isso se aplica também a outros campos: na música, nas artes plásticas,
no teatro, etc. Compartilho também dessa busca, considero-a fundamental para
realizar o agenciamento dos sonhos coletivos. Com a produção colaborativa, por
exemplo, a arte pode deixar de ser uma solução interpessoal e tornar-se uma
perspectiva para todos. Compartilhar informações, conhecimentos, saberes, não
retê-los nunca, deixar fluir sempre, horizontalmente, transversalmente, estar
aberto aos devires, aos fluxos do desejo criativo, para além de processos de
individuação, encalacradamente egóicos, narcísicos (eu! eu! eu! eu! eu!), constitui
pra mim uma atitude singularmente tropicalista, ou pós-tropicalista, ou ainda transpostropicalistacibernética.
O
filósofo francês Pierre Levy é outro que afirma que a interligação de pessoas,
através de tecnologias da inteligência como a internet, por exemplo, faz com
que a troca de experiências e conhecimentos se torne algo mais dinâmico. As
infovias constroem, de forma muito rápida, novos e múltiplos caminhos, antes impossíveis
de serem trilhados. Deixamos de ser meros espectadores passivos para nos
tornarmos co-autores, parte integrante ativa do processo de criação. E não se
trata de fazer uma apologia desvairada dessas novas tecnologias, mas de
reconhecer sua importância e influências - boas e más - nas nossas vidas. Para
aqueles que acham que o mundo virtual solaparia completamente o real, o próprio
Lévy afirma, em seu livro Cibercultura, que “assim como o cinema não substituiu
o teatro, mas constituiu um gênero com sua tradição e seus códigos originais,
os gêneros emergentes da cibercultura como a música tecno ou os mundos virtuais
não substituirão os antigos. Irão acrescentar-se ao patrimônio da civilização
enquanto reorganizam, simultaneamente, a economia da comunicação e o sistema de
artes”³.
Existem
hoje movimentos que, no meu modo de ver, estão agenciando processos altamente
criativos neste mundo cibernético, um deles é o Fora do Eixo, com suas diversificadas frentes, que são, entre
outras coisas, verdadeiras máquinas de
guerras, no sentido deleuziano, contra as formas tradicionais de se pensar,
fazer e gerir a cultura, e com proposições interessantes para os próprios
gestores governamentais. Neste aspecto, estes têm muito a aprender com a moçada
do Fora do Eixo, principalmente o
compromisso coletivo, democrático, com a cultura, sem clientelismo,
personalismo, puxa-saquismo e politicagem que, infelizmente, caracteriza a
prática de muitos desses gestores. O que me faz feliz é saber que aqui, nestas
plagas meiomundianas, esse movimento existe, sob a gestão compartilhada do Coletivo
Palafita, e está se fortalecendo, com suas pulsações éticas, estéticas e
políticas do desejo como potência de mudança, de transformação, de vida, de
devir-revolucionário. Uma postura postropicalistatranscibernética
passa necessariamente por esses processos de subjetivação e singularização
capazes de resistir às variadas formas de controle e domesticação da sociedade
em que vivemos.
Para
finalizar, algumas considerações sobre o próprio texto. Propositadamente, o escrevi
usando e abusando de alguns autores que gosto, pensando com eles, às vezes até acelerando
ou desacelerando seus conceitos. Toda leitura é uma perspectiva, de olhares,
vibrações, intensidades, linhas de fuga. Nenhuma verdade a ser dita,
pronunciada definitiva e metafisicamente, mas um território nômade a ser
trilhado onde a aventura do pensamento se afirme plenamente como metamorfose
ambulante. (Desde os tempos de Raul!). Uma das grandes lições de Foucault: pensar com é melhor do que pensar sobre, pois nos livra da
presunção e da arrogância. O título também é proposital. Uma brincadeira, com sérias
referências. A primeira delas diz respeito ao binômio modernidade versus pós-modernidade
(alvo de muitas polêmicas conceituais). Outra é que lembrei, ao pensar um
titulo para este texto, do poeta suíço Blaise Cendrars, com seu poema “A Prosa
do Transiberiano”, Cendrars esteve no Brasil na década 20, conheceu os
modernistas brasileiros, entre eles, Oswald de Andrade, este antropofagista,
inclusive, o influenciou bastante. Se a
prosa-poema transiberiana de Cendras foi uma das expressões dos “maquinismos em
fúria”, pra usar um verso do futurista Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, do
auge da modernidade industrial e das vanguardas artísticas nascentes, hoje,
podemos vislumbrar o surgimento de uma prosa-poema transcibernética, produzida
colaborativamente, como expressão da viagem criativa pelas múltiplas infovias
da web. A viagem postropicalistranscibernética.
Para os aventureiros, os espíritos libertos, ela é uma experiência extremamente
enriquecedora, proporcionando bons e belos encontros!
Notas
¹O
Conceito de Rede na Filosofia Mestiça. Publicado
em: MORAES, Marcia Oliveira. O conceito de rede na filosofia
mestiça. Revista Informare, v. 6, n. 1, p. 12-20, 2000. Disponível
em:http://www.necso.ufrj.br/MM/O%20Conceito%20de%20Rede%20na%20Filosofia%20Mestica.htm
Gostei da reflexão e acho que o assunto pode ser retomado com textos sobre diversas questões, talvez aprofundando mais sobre a poesia, o poema, a literatura "mestiça"! Fica a sugestão...
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